I - Introdução
Vivemos actualmente numa nova sociedade tecnológica, a qual se veio a implementar de forma extremamente célere sem que houvesse consciência dos riscos que esta transformação acarretaria para o ser humano.
A liberdade de expressão e de exposição acompanhada de uma necessidade egoíca de reconhecimento e de um vazio de amor levou o ser humano a partilhar na internet, máxime nas redes sociais, grande parte da sua privacidade e da sua intimidade para angariar “likes”.
Fruto de muitos séculos sem ser conferida à criança um lugar de especial importância, formaram-se adultos com especiais carências afectivas, com pouca capacidade para reconhecer e lidar com as próprias emoções e sedentos de serem vistos e valorizados.
Adultos estes que encontraram nas redes sociais uma forma de serem vistos e amados, inconscientes muitas vezes dos danos colaterais que daí poderiam advir.
Paralelamente, apesar de em meados do século XX começar a surgir a preocupação de tutelar juridicamente os direitos, liberdades e garantias das crianças conferindo-lhe uma condição especial dada a sua vulnerabilidade e a sua incapacidade para actuar de forma consciente na sociedade, existe ainda uma crença na sociedade contemporânea, com maior ênfase na sociedade ocidental, de que os filhos “pertencem” aos Pais, que estes são os “detentores” da sua vida e que o “poder parental” é ilimitado.
O desenvolvimento e o avanço tecnológico, o ritmo alucinante da sociedade global, a falta de consciência dos Pais relativamente ao seu lugar no acompanhamento da vida e evolução das crianças, a ausência de uma educação para a educação e as escassas ferramentas à disposição dos Pais que promovam a concretização dos conceitos vertidos nas normas legais são fenómenos que exigem atenção e uma maior clareza na sua definição.
O tema que nos propomos analisar prende-se com um dos mais recentes fenómenos sociais denominado “sharenting”, um porrmanteau das palavras “sharing” (partilha) e “parenting” (parentalidade). A principal questão jurídica que aqui se coloca consiste em saber como conciliar os direitos de personalidade das crianças, que incluem o direito à imagem e a reserva sobre a intimidade da vida privada e o exercício das responsabilidades parentais.
Iremos numa primeira parte fazer um breve enquadramento jurídico relativamente a esta temática, numa segunda parte iremos analisar os riscos que podem advir desta prática e de que de forma estão ou poderão estar acautelados eventuais danos daí decorrentes e por último veremos de que forma têm alguns países, nomeadamente Portugal, tratado juridicamente esta questão.
II - Breve enquadramento jurídico
1. Os Direitos das Crianças
1.1 Considerações gerais
O primeiro diploma internacional a referir-se aos direitos da Criança foi a Convenção de Genebra de 1924, colocando, pela primeira vez, a criança em primeiro lugar.
Em 1948 a Declaração Universal dos Direitos do Homem faz também à primazia dos direitos das crianças.
Mais tarde. em 1959 é proclamada a Declaração Universal dos Direitos da Criança a qual estabelece inúmeras regras protectoras dos direitos da criança estabelecendo como premissa basilar o interesse superior da criança.
Em 1989 é aprovada a Convenção dos Direitos da Criança, um dos instrumentos jurídicos mais completo e mais transformador reconhecendo as crianças como titulares autónomos de direitos, liberdades e garantias e sujeitos activos no seu próprio processo de crescimento.
Com efeito, é a partir desta data que surgem grandes mudanças de um ponto de vista jurídico ficando claro que a criança é, per se, detentora de direitos fundamentais, onde se incluem os direitos de personalidade e tem ainda o direito a ser ouvida e exprimir a sua opinião de forma livre “de acordo com a sua idade e maturidade”.
Não obstante, tais princípios vieram abalar uma sociedade iminentemente patriarcal estabelecida há muitos séculos pelo que a sua aplicação, na prática, foi e, a nosso ver, ainda é, muito progressiva e com algumas resistências. A concretização e devida aplicação destas normas requer uma sociedade adulta madura, consciente e educada para educar, fenómenos que ainda estão actualmente em construção.
Note-se por último que esta Convenção tem carácter vinculativo para todos os estados que rectificaram este instrumento jurídico obrigando consequentemente os Estados a integrarem tais normas ao nível da legislação nacional podendo inclusivamente ir mais além na busca da protecção dos direitos das crianças.
A nível internacional, este é sem dúvida o instrumento jurídico de referência tendo posteriormente surgido outros sobre temas mais específicos como a Cooperação em matéria de Adoção (Convenção de Haia de 1993), o trabalho infantil (convenção n.o 182 de 1999) e crimes contra a humanidade (Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional), entre outros.
Portugal assinou a Convenção em 21 de Outubro de 1990 passando a incluir tais direitos na sua Constituição e a legislar sobre inúmeras matérias com o propósito de salvaguardar os direitos e o superior interesse da criança.
1.2. Direito à imagem
O direito à imagem é um direito de personalidade especial protegido a nível
constitucional - artigo 26.o CRP - e especificamente no artigo 79.o do Código Civil. Prevê este artigo do Código Civil que “o retrato de uma pessoa não pode ser exposto, reproduzido ou lançado no comércio sem o consentimento dela (...)”, incluindo aqui dois direitos autónomos: o direito a não ser fotografado e o direito a não ver divulgada a fotografia.
Não se pretendendo fazer aqui uma análise detalhada dos direitos de personalidade
cumpre apenas referir que estes são direitos gerais, absolutos, irrenunciáveis, intransmissíveis e imprescritíveis os quais são adquiridos no momento do nascimento.
Neste contexto, dúvidas não existem de que as crianças são titulares dos direitos de personalidade não estando tais direitos na disponibilidade dos seus representantes legais.
Assume aqui particular importância a tutela destes direitos nas crianças na medida em que estas ainda não detêm consciência da sua existência nem tão pouco capacidade para os fazer valer, podendo inclusivamente ver os seus direitos violados pelos próprios pais.
Mais ainda, com a evolução das novas tecnologias e a “febre” das redes sociais”, a captação e a divulgação da imagem depende de um simples clique. as crianças correm sérios riscos de ver a sua imagem perdida pela mundo virtual colocando muitas vezes em causa o seu desenvolvimento emocional e o seu bem-estar, presente e futuro.
Questão importante que cumpre destacar no âmbito do nosso estudo é que o consentimento legalmente exigido para a exposição ou divulgação poderá ser, em alguns casos, presumido (vide Acórdão STJ de 07.6.2022) ou mesmo prescindido quando assim justifique a notoriedade da pessoa em causa ou o cargo que desempenhe ou perante “exigências de política ou de justiça, finalidades cientificas, didáticas ou culturais, ou quando a reprodução da imagem vier enquadrada na de lugares públicos, ou na de facto de interesses públicos ou que hajam decorrido publicamente”.
Esta previsão deixa, em nosso entender, grande margem para a violação de tal direito à imagem, a qual acarreta muitas vezes consequências irreparáveis, sendo necessária uma análise casuística cuidada na interpretação destes conceitos indeterminados no caso concreto.
No que concerne as crianças a questão prende-se essencialmente com o facto de tal consentimento ter que ser dado pelos pais, acabando estes inevitavelmente por dispor dos direitos de personalidade dos seus filhos menores, ou em alternativa, defendê-los sempre que tal consentimento não tiver sido dado.
1.3. O direito à reserva sobre a intimidade da vida privada
Interligado com o direito à imagem, embora independente do primeiro, está o direito à reserva sobre a intimidade da vida privada, previsto no artigo 80.o do Código Civil. Apesar do legislador não ter consagrado nenhuma definição de reserva de intimidade da vida privada, existe já muita doutrina e jurisprudência que se pronunciou sobre o tema concluindo-se com Menezes Cordeiro que é tudo aquilo que não seja público tais como os sentimentos e emoções da pessoa, a história da sua vida, a sua situação patrimonial, os seus valores, a sua sexualidade, o seu corpo, a sua família, a sua residência, etc.
Porém, na actual sociedade tecnológica e a facilidade com que cada pessoa expõe e partilha nas redes sociais uma grande parte da sua vida privada a linha que separa a esfera da vida privada e familiar da esfera pública torna-se cada vez mais ténue e o conceito de intimidade e privacidade cada vez mais banalizado. Naturalmente que a situação agrava-se ainda mais quando são extravasadas a esferas da vida privada das crianças ao serem expostas pelos pais ou por outras entidades com o consentimento destes.
1.4. A protecção de dados pessoais
A reserva sobre a vida privada encontra-se inevitavelmente relacionada com a temática da protecção de dados, considerando-se em alguns países que tal protecção inclui-se, per se, naquele direito.
Em Portugal existe uma consagração explicita e autónoma sobre o direito à autodeterminação informativa, plasmada no artigo 35.o da Constituição e regulamentada em diversos diplomas - e.g. Lei 58/2029 que assegura a execução do Regulamento da União Europeia 2019/679 e a Lei n.o 59/2019.
Com efeito, o avanço tecnológico possibilita uma recolha de dados pessoais de uma forma quase instantânea e o seu tratamento depende apenas de um clique (ou consentimento) prestado muitas vezes de forma precipitada sem consciência exacta das finalidades e termos da utilização da informação recolhida.
Uma vez mais, o consentimento é aqui o creme da questão.
Apesar das normas legais preverem uma série de limitações quanto à recolha e tratamento dos dados pessoais, nomeadamente quanto ao tipo de dados recolhidos, aos fins a que se destinam e quanto à sua conservação, o desfio neste momento consiste em sensibilizar as pessoas a não abdicarem deste direito que lhes assiste como forma de auto-protecção. Existe, em nosso entender, uma predisposição ou mesmo vontade das pessoas em exporem a sua vida privada, em partilharem informações sobre a sua intimidade e de consentirem no tratamento e divulgação destes dados de forma imprudente sem equacionar os riscos que tal acto acarreta.
É imperioso uma reconceptualização social da privacidade, mais clareza na informação e uma legislação que imponha mais controlos e transparência. Da mesma forma, é também essencial educar e sensibilizar as crianças para estas questões na medida em que se encontram cada vez mais expostas. Embora a lei confira uma protecção especial às crianças, nos termos do
Considerando 38.o do Regulamento da União Europeia sobre protecção de dados, uma vez mais estas encontra-se sujeitas ao consentimento dos titulares das responsabilidades parentais, pelo menos até aos 13 anos . A partir dos 13 anos já poderão ser estas a dar o consentimento para tratamento dos dados pessoais, o que se revela, a nosso ver, ainda mais perigoso.
2. O exercício das Responsabilidades Parentais e o superior interesse da criança
Em 2008, com a entrada em vigor da nova legislação sobre o Direito da Família substitui-se a expressão “poder parental” por “responsabilidades parentais”, ficando mais claro que os Pais não exercem um poder sobre as crianças sendo antes responsáveis pela protecção dos seus direitos, pela sua educação e evolução enquanto ser humano.
Mais recentemente parte da doutrina tem vindo a preferir o termos “cuidado parental” salientando o compromisso diário dos pais para com os filhos e enaltecendo o dever de “cuidado” e protecção. Concordamos com esta terminologia por trazer consigo um cariz mais emocional e menos “funcional” da função dos Pais, o qual consideramos fundamental na actual sociedade.
Não menos importante é a premissa, prevista na lei, de que as responsabilidades parentais devem ser exercidas no superior interesse da criança, e não no interesse dos progenitores, com vista a suprir a incapacidade do menor zelando sempre pelos seus interesses e direitos.
Com efeito, dificilmente se vislumbra o interesse da criança em ver imagens suas divulgadas, em alguns casos, quase diariamente, bem como informações a seu respeito numa idade em que ainda não terá capacidade de exercer a sua escolha.
O exercício das responsabilidades parentais não pode nunca ser exercido de forma ilimitada e indiscriminada. O direito à imagem e à reserva sobre a vida privada das crianças não poderá sucumbir perante a liberdade de expressão dos Pais que acabam por, negligentemente, usar os filhos para captar a atenção do público como se de figurinos se tratasse.
Da mesma forma, não será, no nosso entendimento, válido o consentimento prestado pelos Pais relativamente à divulgação de imagens e dados pessoais dos filhos, tratando-se de uma limitação voluntária de um direito de personalidade, sempre que não existir um efectivo interesse da criança.
Os Pais estão obrigados a zelar pelo crescimento saudável dos seus filhos, pela sua segurança numa sociedade cada vez mais desafiante e pela sua sanidade mental, no presente e no futuro.
Do exposto, consideramos que sempre que objectivamente não se identifique um interesse para a vida do menor deverão os pais abster-se de colocar imagens das crianças e informações relativas à mesma no ciberespaço.
De igual modo, o consentimento para divulgação de dados apenas deverá ser dado em casos específicos e com algumas limitações caso esteja em causa um interesse de ordem pública através do qual o próprio menor, mesmo que de forma indirecta, possa vir a beneficiar.
III - A tutela dos direitos de personalidade das crianças
No ordenamento jurídico português, a tutela dos direitos de personalidade encontra- se prevista no artigo 70.o e seguintes do Código Civil ao consagrar uma tutela geral da personalidade abrangendo todas as formas de lesão, física ou moral.
Esclarece o número 2 do mesmo artigo que tendo ocorrido uma “ofensa ilícita” ou “ameaça de ofensa” o titular do direito poderá reagir em primeiro lugar através das “providências adequadas às circunstâncias do caso com o fim de evitar a consumação da ameaça ou atenuar os efeitos da ofensa já cometida.”
Para além destas providências - as quais poderão ser preventivas ou atenuantes, conforme o caso - poderá também ocorrer responsabilidade civil sempre que se verifiquem os pressupostos da responsabilidade pelo risco ou por factos ilícitos (artigo 483.o e seg. do Código Civil).
Embora o preceito não o preveja especificamente, terá também aplicação a responsabilidade penal (artigos 190.o a 199.o do Código penal) quando também se verifiquem os seus pressupostos e seja apresentada queixa pelo ofendido. Neste sentido de pronunciou o Acórdão da Relação do Porto de 12.07.2017 estabelecendo que “constitui o crime do arto 199o CP (fotografias ilícitas), a realização de cópias informáticas de fotografias existentes dos lesados e dos filhos e livremente acessíveis no Facebook daqueles e o seu envio posterior aos próprios por email, por ter sido feita contra a vontade de quem elas retractavam”.
Porém, no que às crianças diz respeito, coloca-se uma questão pertinente de ordem prática na medida em que estas não dispõem de capacidade jurídica, nomeadamente para agir em juízo. Apenas o poderão fazer se devidamente representadas pelos detentores das responsabilidades parentais, ou por curador especial ou, em última análise pelo Ministério Público. Ora, fácil será de compreender que sendo os pais os representantes legais dos menores, não irão agir juridicamente contra si próprios, ficando afinal as crianças desprotegidas.
Por último refira-se ainda que caso os pais não exerçam as responsabilidades parentais de acordo com o superior interesse dos seus filhos menores poderão incorrer numa situação de abuso de direito previsto no artigo 334.o do Código Civil ficando ainda sujeitos à inibição ou limitação das responsabilidades parentais nos termos dos artigos 190.o e seg. do Código Cicil.
Do exposto, fica claro que apesar de existir efectivamente uma tutela dos direitos de personalidade, dos quais as crianças são também detentoras desde o seu nascimento, não existe um mecanismo que tutele efectivamente os menores não emancipados.
Refira-se ainda que tendo em consideração as consequências da violação do direito à imagem e à reserva sobre a vida privada, muitas das vezes irreparáveis principalmente quando se trata da sua divulgação no mundo virtual, é fundamental uma atuação preventiva, a qual terá necessariamente que passar por uma consciencialização não só dos pais e dos menores mas de toda a comunidade dos riscos que advêm do “sharing”.
Consideramos que seria imperioso também legislar no sentido de proibir expressamente a exposição das crianças nas redes sociais ou noutras plataformas online, deixando claro que tal proibição se sobrepões à liberdade de expressão dos pais na medida em que põe em causa os direitos fundamentais e o superior interesse da criança.
Apesar de tal normativo ainda não ter previsão legal em nenhum país começa a surgir alguma jurisprudência neste sentido. Vejamos a decisão do Tribunal da Relação de Évora de 25.06.2015 ao referir que “a imposição aos pais do dever de abster-se de divulgar fotografias ou informações que permitam identificar a filha nas redes sociais mostra-se adequada e proporcional à salvaguarda do direito à reserva de intimidade da vida privada e da protecção dos dados pessoais e, sobretudo, da segurança do menor no Ciberespaço”.
Tal acórdão alerta ainda para os perigos iminentes desta exposição esclarecendo que “o exponencial crescimento das redes sociais nos últimos anos e a partilha de informação pessoal aí disponibilizada” permite que indivíduos que “desejam explorar sexualmente as crianças recolham grandes quantidades de informação disponível e seleccionem os seus alvos para realização de crimes”.
Note-se aliás que, para além destes crimes acrescem tantos outros relativos à alteração da identidade com base em filtros e mecanismos digitais, etc. Por sua vez, entendeu o Supremo Tribunal de Justiça a propósito de um programa televisivo que expunha o comportamento das crianças em casa, que “o direito à imagem e o direito à reserva sobre a intimidade da vida privada e os outros direitos de personalidade são concretizações da dignidade da pessoa humana, que é um valor intangível e indisponível”, acrescentando ainda que “a instrumentalização das pessoas e, em particular das crianças é contrária à ordem pública pois ofende o valor da dignidade humana. Num contexto deste tipo, a limitação dos direitos de
personalidade por via do consentimento é absolutamente irrelevante como causa de exclusão da ilicitude da lesão.”
Posteriormente, também o Tribunal Constitucional, no âmbito do mesmo processo, deu razão ao Supremo Tribunal de Justiça, decidindo ainda “não julgar inconstitucional a norma que sujeita a participação de menores em programas televisão a autorização da Comissão de Crianças e Jovens”.
Em suma, já existe jurisprudência inequívoca sobre a necessidade de tutela dos direitos das crianças e que estes devem ocupar um lugar de primazia face ao exercício das responsabilidades parentais que se devem pautar na defesa do superior interesse da criança.
IV - Direito Comparado - Comunitário
No quadro comunitário tem-se vindo a regulamentar cada vez mais tendo em vista a
protecção dos dados das pessoas, no qual estão naturalmente incluídas as crianças. Estas encontram-se também protegidas pela Convenção dos Direitos das Crianças, a qual já referimos supra.
Também de salientar o Regulamento Geral de Protecção de Dados (RGPD) - Regulamento da União Europeia n.o 679/2016 de 27 de Abril, prevendo expressamente no seu artigo 17.o o direito ao apagamento dos dados ou “direito a ser esquecido”, podendo, nos termos do artigo 8.o do mesmo diploma as crianças, com idade igual ou superior a 16 anos (a qual poderá ser reduzida para 13 anos), pedir que os seus dados sejam apagados.
Embora já haja uma protecção mais efectiva da criança relativamente à sua presença online, este diploma coloca o foco e as obrigações nas empresas (que controlam os dados pessoais) e não trata a questão relativa ao direito dos pais no âmbito das suas responsabilidades parentais, deixando ainda desprotegidas as crianças com idade inferior a 16 ou 13 anos, consoante previsão de cada estado.
De acordo com os resultados de um estudo recente do EU Kids Online 29% das crianças que participaram, com uma idade compreendida entre os 9 e os 17 anos, dizem que os pais publicaram textos, vídeos ou imagens sobre eles sem lhes perguntarem se estavam de acordo; 14% pediram aos pais que retirassem esse conteúdo; 13% ficaram incomodados com essas partilhas e 6% destes menores admitem ter recebido mensagens negativas ou ofensivas por causa de conteúdos publicados pelos pais.
De acordo com um estudo internacional, estima-se que, em média, uma criança aparece em cerca de 1300 fotografias antes de atingir os 13 anos.
Neste contexto, é imperioso começar a legislar sobre estas matérias a nível comunitário e internacional por forma a adequar o normativo legal à actual sociedade emergida no mundo virtual com todos os riscos que tal acarreta.
Vejamos a situação de alguns países que mais têm debatido este tema:
1. França
É sem dúvida o país pioneiro relativamente à legislação sobre a protecção dos direitos da criança. A título de exemplo refira-se a Lei n.o 2020 - 1266 de 19 de Outubro sobre a exploração comercial da imagem das crianças com menos de 16 anos nas plataformas digitais, concretizada pelo Decreto n.o 2022-727 de 28 de Abril relativamente às condições em que as pessoas podem realizar, produzir e divulgar videos expondo menores de 16 anos em plataformas digitais de partilha de vídeos, tendo em vista o lucro.
Também a Lei n.o 2022-299 de 2 de Março vem regulamentar sobre o assédio no ciberespaço com especial protecção das crianças. E ainda a Lei n.o 2022-300 de 2 março prevendo um reforço do controlo parental relativamente aos meios de acesso à internet por menores.
No que ao tema do sharenting mais concretamente diz respeito, existe actualmente uma proposta de lei n. 758 a ser discutida no Parlamento (Assemblée Nationale). Tal como se refere no preâmbulo da referida proposta de lei, na sua elaboração interfiram representantes das associações de protecção de menores, psicólogos e juristas com a finalidade suprema de ser, antes de mais, uma “lei pedagógica “ mais do que uma lei sancionatória.
Em primeira instância, este dever de protecção da imagem da criança cabe aos pais no âmbito das suas responsabilidades parentais; apenas nos casos estritamente necessários haverá intervenção do Estado, através do poder judiciário, para cautelar a efectiva protecção do direito à imagem e reserva sobre a vida privada do menor.
Em termos gerais, sugerem-se quatro alterações:
- Incluir de forma expressa o dever de proteger a imagem das crianças no âmbito das responsabilidades parentais,
- Clarificar que o exercício do direito à imagem dos menores deve ser exercido por ambos os pais, parecendo indicar que se trata de uma questão de especial relevância para a vida do menor;
- Realçar a possibilidade de haver uma intervenção judiciária em caso de desacordo dos pais relativamente a estas matérias;
- Abrir a possibilidade para a aplicação de uma limitação ou inibição ao exercício das responsabilidades parentais em caso de conflito entre o interesse dos pais e o interesse da criança no exercício do direito à imagem do menor.
2. Reino Unido
É também um dos países com mais avanços legislativos tendo sido já aprovada pelo Parlamento a nova “Online Safety Bill”, depois de ter sido largamente debatida. A maior inovação prevista neste diploma é a total responsabilização das plataformas digitais de media pelo conteúdo que detém e divulgam. Para além da responsabilidade civil com coimas muito elevadas (até 18 milhões de libras ou 10% do lucro da empresa em causa) poderá ainda haver lugar a responsabilidade penal.
As empresas detentoras destas plataformas de “social media” ficarão obrigadas a evitar que seja divulgado qualquer espécie de conteúdo ilegal ou a remover todos os conteúdos ilegais, a fazer um controlo mais apertado das idades e características dos seus usuários e a dotar os pais e crianças com meios claros e acessíveis para reportar quaisquer questões relativas a este tema.
Com efeito, trata-se de uma lei extremamente severa e com “tolerância-zero” procurando garantir que o “Reino Unido seja o país mais seguro do mundo para estar online”.
Contudo, neste diploma não é abordada a questão do sharenting embora seja previsível que, no seguimento deste, muitos outros virão e que este tema seja regulado em breve.
3. Alemanha
A Alemanha, embora ainda não tenha legislado sobre esta matéria talvez seja o país com campanhas publicitárias mais marcantes sobre o tema especifico do sharenting que têm causado grande impacto na sociedade. Com efeito, ninguém ficará indiferente ao ver a Deutsch Telekom - Sharenting (2023) na qual nos confrontamos de forma muito real com os efectivos riscos do shareting ou com a #deinkindauchnicht perante a qual ficamos surpreendidos com as imagens.
Conforme referimos anteriormente, tratando-se de uma questão que requer uma
actuação preventiva tendo em consideração os riscos decorrentes da falta de controlo e da perenidade no mundo digital, a consciencialização dos adultos através deste tipo de campanhas é, a nosso ver, uma estratégia extremamente eficaz para uma alteração de comportamento dos pais e de toda a sociedade.
4. Outros
Em Itália houve já uma decisão do Tribunal, numa acção proposta por um menor de 16 anos, no sentido de condenar uma Mãe ao pagamento de uma indemnização ao filho por ter postado foragiras deles no Facebook e ficando esta proibida de tal prática por lesar gravemente os direitos do filho.
Na Finlândia, o estado foi condenado pelo Tribunal Europeu dos Direitos Humanos a pagar uma indemnização a um menor por este ter sido sexualmente assediado por um cidadão (cuja identidade o Estado finlandês não pode divulgar pelo sigilo a que estão obrigadas as redes de telecomunicações) que usou uma fotografia sua publicada na internet.
Assiste-se já em muitos países da União Europeia mas não só (também nos Estados Unidos, Austrália, Brasil, etc.) a uma efectiva preocupação sobre esta temática tendo vindo a ser adoptadas novas leis visando uma maior protecção das crianças bem como artigos, campanhas, programas e outros com a finalidade de consciencializar adultos e crianças para os cuidados a ter quando escolhemos, quase que inevitavelmente, estar presente no ciberespaço.
V - Conclusão
Vivemos numa sociedade em completa transformação em que o mundo digital assume cada vez mais relevância e as redes sociais, como o Facebook, o Instagram, Tik Tok, Snapchat, etc. são verdadeiros forums de partilha de informação, muitas das vezes da vida privada das pessoas.
Se é certo que este novo mundo tem inúmeras vantagens tais como a partilha de conhecimento, a celeridade da comunicação, a facilidade de estabelecer novos contactos aproximando pessoas com interesses semelhantes, etc. certo é também que a sua utilização excessiva e não prudente acarreta enormes riscos passíveis de violarem os direitos, liberdades e garantias das pessoas, especialmente a das crianças.
Tratando-se das crianças surgem riscos acrescidos dada a sua vulnerabilidade, falta de sabedoria, inconsciência procurando-se consequentemente acautelar os seus direitos sendo os progenitores os principais responsáveis por este dever de protecção.
Porém, não têm sido poucos os casos - alguns já tratados em sede judicial - em que são os próprios pais, no âmbito do exercício das suas responsabilidades parentais, a expor imagens dos filhos em plataformas digitais e/ou em redes sociais com os mais diversos fins. Na grande maioria dos casos nenhuma dessas finalidades implica um benefício para o menor, antes pelo contrário, desrespeitando consequentemente o superior interesse da criança.
Se pensarmos que, de acordo com um estudo efectuado, 50% das fotografias presentes nos fórums de pedofilia terão sido inicialmente publicadas pelos pais nas redes sociais,facilmente compreenderemos a gravidade dos danos que poderão decorrer de tal prática negligente.
Quando actuamos no ciberespaço perdemos imediatamente o controlo dos dados e das imagens que partilhamos pondo em risco os direitos fundamentais de quem é exposto tais como o direito à imagem e à reserva sobre a intimidade da vida privada. Alguns ordenamentos acrescentam ainda o direito a viver em paz (“right to be get alone”) e o direito ao esquecimento (“right to be forgotten”).
No caso das crianças e jovens estes direitos assumem especial relevância já que poderá pôr em causa o seu futuro, o seu desempenho profissional, a sua estabilidade emocional etc.
Por estas razões, consideramos o seguinte:
(i) por regra, os pais devem abster-se de publicar imagens dos filhos e não consentir na partilha de informações respeitantes aos filhos,
(ii) estes também devem ser informados e consciencializados, pelos pais e pela escola, para os perigos decorrentes de tal exposição ou divulgação por forma a poderem fazer escolhas mais conscientes;
(iii) também deve ser facultada aos pais mais informações sobre estes temas, partilhando o resultado de estudos realizados, exemplos práticos, decisões judiciais, etc. por forma a ir construindo uma sociedade adulta mais madura e mais consciente;
(iv) o menor deve ser chamado a intervir sobre estes temas sempre que a sua maturidade assim o permitir, relembrando que as crianças de hoje em dia adquirem esta capacidade cada vez mais precocemente;
(v) em caso de conflito de interesses entre a liberdade de expressão dos pais e a protecção dos direitos de personalidade e o superior interesse da criança, deverá prevalecer o segundo;
(vi) embora já exista tutela jurídica nestas matérias, o recurso aos meios de defesa disponíveis é, na prática, quase inacessível às crianças, sendo necessário legislar especificamente sobre estas matérias tendo em vista trazer mais clareza às limitações do exercício das responsabilidades parentais, tal como tem vindo a acontecer em França;
(vii) é fundamental nestas matarias, tendo em consideração os riscos que referimos supra, agir preventivamente pelo que o maior investimento será o de criar mecanismos que possam dotar as famílias - adultos e crianças - de ferramentas para gerirem este tipo de situação e se tornarem mais conscientes dos riscos que estão em causa, tais como:
- o recurso à mediação familiar para facilitar a comunicação de temas mais sensíveis,
- a previsão da regulação destas matérias nos acordos de regulação das responsabilidades parentais, em caso de divórcio, etc.
- a introdução nas escolas de disciplinas em que se fale dos direitos, liberdades e garantias de cada um e de que forma os mesmos podem ser protegidos, pondo especial enfoque nos principais temas patentes na actual sociedade: internet, redes sociais, partilha de informação, bullying, etc.
É urgente, na nossa opinião, legislar sobre estes novos temas mas essencialmente haver uma efectiva atenção relativamente à saúde mental e emocional dos adultos que constituem a sociedade por forma a devolver-lhes a capacidade de cuidarem de si, de forma consciente e saudável, para depois podem também exercer este “cuidado parental” que as crianças tanto precisam.
Da mesma forma, urge legislar e implementar novos modelos educativos, nos quais os professores serão os principais intervenientes, tendo em vista dotar as crianças com conhecimento e ferramentas que as protegerem dos riscos cibernáuticos acautelando os seus direitos à reserva da sua vida privada, direito ao anonimato, ao silêncio, à introspecção e à vida sem filtros.